Texto revisado e imagens atualizadas.
Crédito da imagem: Madelgarius via Wikimedia Commons, licença de uso: CC BY-SA 4.0
Eu não costumo escrever textos filosóficos aqui, mas alguns problemas que percebo no que estamos vivendo têm me incomodado profundamente. Como um desses problemas pode ser resolvido com software livre, me senti particularmente inspirado a escrever sobre isso.
Comecemos lembrando do conceito de software livre como apresentado pela Free Software Foundation (FSF, “Fundação do Software Livre”):
Por “software livre” devemos entender aquele software que respeita a liberdade e senso de comunidade dos usuários. Grosso modo, isso significa que os usuários possuem a liberdade de executar, copiar, distribuir, estudar, mudar e melhorar o software. Assim sendo, “software livre” é uma questão de liberdade, não de preço. Para entender o conceito, pense em “liberdade de expressão”, não em “cerveja grátis”.
(ênfase minha)
Nota do Linux Kamarada:
No inglês, a palavra free pode significar “livre” – como em freedom, “liberdade” – ou “grátis” – como em freeware, “software gratuito” – e por isso a FSF faz essa distinção, por vezes preferindo o espanhol: software libre.
Vejamos alguns exemplos de softwares livres e softwares não livres para ilustrar melhor essa definição, que pode ser estranha para quem não está acostumado com ela.
Por exemplo, o sistema operacional Windows, desenvolvido pela Microsoft e presente na maioria dos computadores vendidos no mundo todo, não é um software livre, já que seus usuários não estão autorizados a copiá-lo e distribui-lo, o que seria considerado crime de pirataria. Também não é possível estudar o funcionamento interno do Windows nem mudá-lo, porque seu código-fonte não é disponibilizado pela Microsoft. Ninguém pode criar sua própria versão do Windows. Eventuais melhorias no Windows só podem ser feitas pela Microsoft. O máximo que usuários podem fazer para mudar o Windows são reclamações ou sugestões para a Microsoft, que pode ou não resolvê-las ou atendê-las.
Diferente é o sistema operacional Linux, inicialmente desenvolvido pelo engenheiro de software Linus Torvalds, mas que hoje recebe contribuições de várias pessoas e empresas do mundo todo. Hoje há milhares de distribuições Linux (como é chamado o conjunto de sistema operacional Linux mais aplicativos para ele), algumas maiores e mais conhecidas – como Ubuntu, Debian, openSUSE Leap, openSUSE Tumbleweed, Fedora e Manjaro – e outras menores, em sua maioria originadas a partir dessas maiores. Qualquer pessoa pode baixar uma distribuição Linux e instalá-la no seu computador, fazer uma cópia da mídia de instalação para um amigo sem incorrer em crime de pirataria, estudar o funcionamento interno do sistema a partir do seu código-fonte, assim como criar sua própria distribuição Linux a partir de outra maior.
O autor deste artigo é mantenedor de uma distribuição Linux brasileira, o Linux Kamarada, baseada na distribuição Linux maior openSUSE Leap. Enquanto o openSUSE Leap tem um propósito mais geral, fornecendo um sistema operacional estável para computadores pessoais e servidores, assim como ferramentas para desenvolvedores e administradores de sistemas, o Linux Kamarada é focado em computadores pessoais e em usuários iniciantes.
Mais alguns exemplos de softwares livres famosos incluem o sistema operacional Android, presente na maioria dos smartphones, e o navegador Firefox, um dos navegadores mais utilizados pelos internautas.
Voltando à definição de software livre, como se vê pela própria definição, a liberdade de software está intimamente associada à liberdade de expressão. Isso porque quando você é livre para usar o software da forma que bem entende, ou modificá-lo da forma que bem entende, por vezes até mesmo clonando o software original e iniciando um software novo, em última análise você é livre para expressar concordância ou discordância em relação a quem desenvolve aquele software.
Um exemplo bastante ilustrativo disso é a suíte de escritório LibreOffice. Antes dela, havia a suíte OpenOffice, software livre, então desenvolvido pela Sun. Aqui no Brasil, ele era chamado de BrOffice, devido a problemas de propriedade intelectual. A Sun foi adquirida pela Oracle em 2009. Mas a comunidade do OpenOffice não ficou satisfeita com a forma como a Oracle deu continuidade ao desenvolvimento dos softwares livres que herdou da Sun. Em 2010, os desenvolvedores do OpenOffice decidiram se desvincular da Oracle e criaram uma fundação, a The Document Foundation, para dar continuidade ao desenvolvimento da suíte de escritório de forma independente. Eis que criaram a suíte de escritório LibreOffice como uma ramificação (fork) do projeto original OpenOffice. Em 2011, a Oracle passou o OpenOffice para a Fundação Apache, que o mantém desde então. Mas o OpenOffice está praticamente parado no tempo, com o LibreOffice tendo recebido nesses anos mais atualizações, correções de bugs e novas funcionalidades e se tornando, na prática, a sua continuação.
Devido a insatisfação semelhante com a Oracle, hoje temos o MariaDB, fork do MySQL.
Há outros exemplos. O KeePassXC surgiu devido a uma insatisfação com o desenvolvimento (considerado lento) do KeePassX. Já o KeePassX surgiu como um port para Linux do KeePass, que até então era desenvolvido apenas para Windows.
Tanto o LibreOffice quanto o KeePassXC já vêm instalados por padrão no Linux Kamarada, cujo desenvolvimento, aliás, eu mesmo comecei por não concordar com o Projeto openSUSE não ter lançado imagens Live para o Linux openSUSE Leap 42.1. Depois, com o lançamento do openSUSE Leap 15.0, o openSUSE voltou a fazê-las, e hoje temos imagens Live das duas distribuições, openSUSE Leap e Linux Kamarada.
Como se vê, progresso se faz no debate saudável de ideias.
E isso acontece não só na área de software, mas na ciência como um todo.
Crédito da imagem: Pensador
Hoje sabemos que a Terra gira em torno do Sol, mas sabia que nem sempre essa foi a “versão oficial” dos fatos? Há muito tempo atrás se acreditava que o Sol girava em torno da Terra, teoria proposta pelo astrônomo grego Ptolomeu (90-168 d.C.) e aceita como verdade por mais de mil anos. O teólogo Giordano Bruno (1548-1600) morreu queimado na fogueira por defender o contrário, ou seja, que a Terra girava em torno do Sol. O astrônomo Nicolau Copérnico (1473-1543), o primeiro a estabelecer de forma científica o heliocentrismo, teve seu livro censurado, listado no Índex – a lista dos livros “hereges” proibidos pela Igreja Católica. Já o astrônomo Galileu Galilei (1564-1642) foi o primeiro a comprovar, por meio de observações, a teoria heliocêntrica de Copérnico, mas foi preso e ameaçado de morte pela Santa Inquisição, até que negou suas descobertas. Somente em 1992, passados mais de 300 anos, a Igreja Católica reconheceu o engano que cometeu ao condenar Galileu.
Hoje também sabemos que não é possível transformar qualquer coisa em ouro. Mas ficamos sabendo disso depois de muitas tentativas dos alquimistas na Idade Média. Inspirados pelo que hoje poderíamos chamar de “crenças malucas”, os alquimistas realizaram vários estudos e experimentos que acabaram dando origem à Química Moderna.
Hoje, há quem acredite – e até mesmo quem tente provar – que a Terra é plana. Não foi o que aprendi nas aulas de Geografia e, sinceramente, acho que essas pessoas estão perdendo seu tempo. Mesmo assim, não as desencorajo a fazerem seus experimentos. Da minha parte, não concordo com elas e não as financio, mas penso que elas são livres pra fazer o que bem entendem com seu tempo e dinheiro. Acredito que vão acabar descobrindo por conta própria que a Terra é redonda (ou, para ser mais preciso, oval), e não plana. Quem sabe nesses experimentos não descobrem mais alguma coisa, como fizeram os alquimistas?
Mas os maiores impasses científicos dos últimos anos não são nem esse. Se você acompanha as notícias, deve estar cansado de saber, dispensa eu explicar aqui. Esses impasses não me preocupam, porque ciência se faz assim: eventualmente, esses impasses se resolvem, e um dos lados acaba virando o “consenso”. O que me preocupa é a percepção de que nas maiores redes sociais – como Facebook, Instagram, Twitter ou YouTube – dependendo do que você fale sobre esses assuntos, você pode ter seu alcance limitado, sua conta suspensa ou até mesmo excluída. Embora as redes apresentem essas punições como “combate à desinformação”, e isso pareça ser uma coisa boa, devo alertar a quem me lê que o nome correto disso é censura, não é nada bom, e é ineficaz em “combater desinformação”.
Não vou citar exemplos aqui, até porque não quero defender “um lado” ou “o outro lado”. Se quiser, você pode pesquisar e encontrar exemplos. Vou focar no problema da censura.
Antes, uma ressalva: entendo que as redes sociais são propriedades privadas dos seus donos e que “minha casa, minhas regras”. O YouTube, por exemplo, tem o direito de remover vídeos que lhe desagradem – principalmente se tal remoção está prevista nos seus termos de uso, com os quais seus usuários implicitamente concordam ao usar a plataforma.
Dito isso, entendo que o YouTube pode fazer isso, mas penso que não deveria fazer isso.
Se o objetivo dessas redes é realmente “combater desinformação”, estão fazendo isso do jeito errado. A melhor forma de combater “desinformação” é com informação. Se vejo alguém falando algo de que discordo, deixo um comentário esclarecedor embaixo, ou faço uma publicação no meu próprio perfil falando o que penso, com o que concordo. A melhor forma de combater uma “má ideia” é deixar que ela apareça, que ela seja conhecida, para que possa, então, ser refutada e nunca mais defendida ou praticada. Ninguém é dono da verdade. Por isso, não há ninguém melhor do que o próprio usuário das redes sociais para julgar a veracidade de cada conteúdo. E se as redes sociais permitem que uma infinidade de opiniões diferentes sobre determinado assunto circulem livremente, elas oferecem mais material para que cada usuário possa julgar o mérito de cada opinião e, assim, formar sua própria opinião.
Se, em vez disso, uma rede social bane um usuário, ela não está verdadeiramente silenciando essa pessoa ou suas ideias. Especialmente na era da Internet e da informação descentralizada e distribuída, essa pessoa vai encontrar outros canais para divulgar suas ideias. Dessa forma, outras redes estão crescendo, como WhatsApp e Telegram, onde as comunicações são mais privadas, e até mesmo redes sociais alternativas estão surgindo e crescendo também, como Gab, Parler e GETTR. Há quem migre pra essas redes porque foi banido das outras, e há quem migre pra continuar seguindo quem já seguia antes.
Com relação ao YouTube, tudo o que conseguiu com sua “caça às bruxas” foi ganhar concorrentes: BitChute, Rumble e LBRY/Odysee – já já volto a esta última.
Os algoritmos das redes sociais já percebiam os gostos das pessoas e lhes recomendavam conteúdos do seu interesse, criando uma espécie de ciclo vicioso no qual seus usuários cada vez mais recebiam conteúdos com os quais já concordavam previamente. Sem contato com ideias diferentes, as pessoas acabaram se isolando em bolhas, e isso já prejudicava o debate. Se agora nem diferentes bolhas podem conviver na mesma rede social, e cada bolha vai precisar ter uma rede social inteira só sua, não vai haver mais debate. E isso é perigoso.
Vou citar apenas um exemplo não relacionado ao assunto mais polêmico de 2020 e 2021.
Veja, por exemplo, o caso do jornalista e advogado Glenn Greenwald, que também é ativista na luta por liberdades civis, liberdade de expressão e privacidade. Ele se tornou mundialmente conhecido após denunciar em 2013 no jornal The Guardian, com documentos confidenciais vazados da NSA por Edward Snowden, que o governo norte-americano vigiava as ligações dos seus cidadãos. Aqui no Brasil, ele se tornou mais conhecido por sua cobertura da Lava Jato em 2019 no jornal The Intercept, que ele cofundou em 2014. Em outubro de 2020, ele pediu demissão desse mesmo jornal, depois de ter sofrido censura interna dos próprios colegas para que não publicasse uma matéria criticando Joe Biden, então candidato à presidência dos EUA. Hoje, em 2021, Glenn Greenwald conduz seu trabalho de forma independente escrevendo no Substack e lançando vídeos no Rumble.
Novamente, quero deixar claro que aqui não estou defendendo o Glenn Greenwald, até porque não concordo com todas as ideias dele, embora concordo, sim, com muitas, e até o respeito e admiro pelas ideias em que concordamos. Eu diria até que é difícil – talvez impossível – alguém concordar com outrem em tudo. Apenas o trouxe como exemplo de alguém que não se deixou intimidar pela censura e encontrou meios alternativos para falar.
Das novas redes sociais que estão surgindo, uma em particular me chamou a atenção por ser uma solução interessante envolvendo software livre.
LBRY (do inglês library, que quer dizer “biblioteca”) é, ao mesmo tempo, o protocolo de uma rede para compartilhamento de conteúdos (vídeos, áudios, documentos ou qualquer outro tipo de arquivo) que combina ideias do BitTorrent e do Bitcoin, e o aplicativo cliente que permite o uso dessa rede. O LBRY é software livre e seu código-fonte pode ser conferido no GitHub.
Odysee é o nome da interface web do LBRY, feita e mantida pelos mesmos criadores do LBRY, que permite que vídeos publicados nessa rede possam ser vistos em qualquer navegador, sem necessidade de instalar o aplicativo. Experimente: acesse odysee.com.
Como a rede LBRY é baseada em blockchain (semelhante à do Bitcoin) e seus conteúdos são servidos diretamente a partir dos computadores dos usuários (conceito semelhante ao de semeador, seeder, do BitTorrent), é impossível censurar um vídeo compartilhado usando o protocolo LBRY. Enquanto houver pelo menos uma cópia desse vídeo em pelo menos um computador da rede, será possível ver esse vídeo. Desse modo, canais no LBRY são bastante resilientes a censura. A rede LBRY possibilita verdadeira liberdade de expressão.
Porém, isso não quer dizer que qualquer tipo de conteúdo possa ser postado sem qualquer tipo de consequência. O site Odysee possui suas regras da comunidade e vídeos com conteúdos que a infringem, como pornografia ou terrorismo, por exemplo, podem ser deslistados do site, de modo que não possam ser encontrados pela busca do site, nem visualizados no site. Ainda assim, poderiam ser encontrados e visualizados pelo aplicativo. Como a monetização dos vídeos também é gerenciada pelos criadores do LBRY, é possível que vídeos que não sigam as regras da comunidade sejam desmonetizados.
Note que este software livre, o LBRY, também surgiu de uma discordância, como as que mencionei antes: discordância da forma como as grandes redes sociais têm tratado seus usuários e conteúdos. E ele veio para permitir que outras pessoas sigam discordando.
Todos podem se expressar na rede LBRY, independentemente de orientação política, crença religiosa, etc.
Os Bitcoinheiros, cujo canal no YouTube eu já havia indicado em outro texto, também têm um canal no LBRY.
Eu também criei um canal do Linux Kamarada no LBRY e disponibilizei lá os vídeos que estavam no canal no YouTube (os próximos vídeos serão enviados para ambas as redes):
Oportunamente, em um próximo texto, falarei um pouco mais sobre o aplicativo LBRY para Linux. Enquanto isso, você pode explorar a interface web do Odysee. Até a próxima!